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  • Foto do escritorYan Menezes Oliveira

Clínica em tempos de COVID-19: importâncias da manutenção do atendimento de maneira remota

Atualizado: 21 de mai. de 2020

Escrito em parceria e a partir de conversas com Julia Porta e Kellen Lima



Demandas, analisadores e a política do agora


Vivemos um momento em que grande parte da população planetária encontra-se em situação de isolamento social em decorrência das estratégias de controle e de desaceleração da contaminação pelo COVID-19 (Coronavirus Disease 2019). Em função disso, presenciamos um acontecimento que destaca o caráter político, público e comum do nosso presente e do nosso trabalho clínico. Trata-se de um momento político por nos remeter às dinâmicas da vida social e comunitária, bem como da relevância das decisões aparentemente individuais em relação ao cuidado com a saúde de toda sociedade um nível global.


Ao mesmo tempo que nos impulsiona à um exercício público e comum de cuidar de si para cuidar do outro, somos puxados também para uma experiência de distanciamento do convívio social, restrições de contato com outros corpos. Diante desse acontecimento, desta política do agora que nos remete a grandes desastres e catástrofes assoladoras, cabe a nós refletirmos o que tal momento expõe e produz na realidade dos corpos, em especial como e de que forma esse corpo habita e se cria no espaço do atendimento, escuta, experimentação e cuidado da clínica.


Em primeiro plano, o isolamento social apresenta-se como medida de extrema importância para o controle da pandemia. Tal contexto produz a condição e a importância de mantermos e cuidarmos de nossos atendimentos de maneira remota, prática esta que vinha se tornando cada vez mais comum no exercício clínico cotidiano, mas que não deixa de produzir importantes questões a respeito das especificidades de um trabalho que envolve tanto contato.


Parece indispensável no atual contexto cuidar da manutenção e até mesmo da abrangência dos atendimentos, tendo em vista como o isolamento social pode, além de produzir novas demandas em direção à saúde mental, tais como ansiedade, sensação de isolamento e solidão, apreensão quanto às condições do mundo, frustrações, há ainda a grande chance de intensificar questões importantes às/aos pacientes. A política do agora, o acontecimento do COVID-19 que recai sobre todos nós de maneira comum, pode funcionar como um catalisador, um encontro que acelera e intensifica questões já presentes nas formas e nas camadas de vida de cada um de nós.


Assim sendo, torna-se importante pensar e produzir modos para que as vivências aceleradas e intensificadas pelas condições possam se tornar analisadores que se produzem na escuta clínica. Partimos da premissa de que não há uma história factual e individual dos corpos, mas processos de produções coletivas e políticas de camadas de vivências que produzem narrativas de si no espaço clínico. Analisadores podem ser entendidos como momentos e gestos produzidos na e pela escuta clínica em que o que é dito e expresso sobre si se desloca, pode ser estranhado em si, produz diferença no sentido de problematizarmos formas habituais e, muitas vezes, caducas de vida. A situação atual escancara o vetor político e comum da clínica e pode-se refletir a respeito de como o espaço clínico pode produzir cuidados analisadores, isto é, momentos e gestos de produção de acolhimento e elaboração de narrativas onde os corpos podem agenciar seus processos formativos de maneira autônoma no presente.


É evidente que a sensação de perda de controle, de impotência e de falta de recursos pode aparecer nas trocas clínicas, tanto por parte dos pacientes quanto por parte daqueles que escutam. Pensar o processo clínico como o processo conjunto de produção de analisadores é pensar na produção de autonomia no agora, no cenário político-social-histórico que compõe os corpos. O que nos seria possível agora?



Espaço comum e espaço singular


Ao mesmo tempo inseridos e produtores do tempo em que nos encontramos e em que os encontros continuam a acontecer, dois problemas parecem se destacar e se entrelaçar de maneira comum, duas pistas do presente dos corpos, a saber, o problema da indiferenciação da experiência e o problema da desorganização dos corpos.

Por se tratar de um acontecimento que escancara a política do agora e o plano comum das existências em comunidade, parece fácil emergirem na clínica e no cotidiano enunciados e gestos que destacam de maneira paralisadora o aspecto comum e ordinário da experiência. Isto é, por todos estarmos tão imersos no momento e no isolamento social, podem emergir falas e comunicações que destacam uma interpretação de que todos estão exatamente na mesma situação, que não há nada de diferente se passando com aquele corpo específico, que a experiência que se vive no isolamento social é a mesma para todos.


Através da indiferenciação da experiência, o espaço clínico pode parecer árido e escasso, sem que palavras ou gestos circulem. Assim, remete-se à importância de destacar como a política do agora atravessa e produz os corpos de maneira singular. É importante pensar e produzir analisadores que destaquem o que há de aparentemente repetido e comum na experiência de cada um dos corpos, ao mesmo tempo em que a escuta é direcionada às questões de como o comum afeta cada corpo. Como é o comum para você? Como é a sua rotina comum? Qual é a experiência do comum, do isolamento, da mesma coisa todos os dias, que seu corpo produz? Partimos do pressuposto de que a experiência é algo irredutível e que, através da palavra e dos gestos, há sempre algo a mais a ser dito, há sempre um e..., e.., e... a se conectar com o fora através da palavra e do gesto.


Em seguida, quanto à desorganização dos corpos, é diante da agitação e da desordem, da imprevisibilidade, que os corpos tendem a se desorganizar, a desagrupar suas partes de maneira que pode produzir confusão, sensação de impotência e de falta de recursos. É importante lembrarmos Suely Rolnik quando esta traz três grandes formas do medo e da angústia que provocam a desorganização da experiência, a saber, o medo da morte, o medo da loucura, e o medo do fracasso. Diante do contexto atual que vivemos, parece evidente que todos esses medos se intensifiquem e produzam certas doses de paralisia e de perda de sentido para a existência. Pensamos numa intensa desorganização da rotina, em uma intensa desterritorialização dos hábitos, das relações, dos convívios, das ferramentas e dos recursos. Uma intensa desorganização da experiência do tempo, estreitando o horizonte do futuro em um presente de pouquíssimas possibilidades e confinamento.


Um gesto importante diante de tal desorganização que permeia os corpos neste instante, talvez seja o de cartografar os recursos disponíveis. Uma vez que o tempo futuro é da incerteza, e o do presente produzido em paralisia é o do confinamento, talvez seja interessante pensar esse mapeamento dos recursos simbólicos, corpóreas gestuais que uma vez já serviram para momentos de desorganização e desterritorialização nas histórias dos corpos. Singularizar a experiência do “susto” causada pelo acontecimento do COVID 19 pode ser o combustível para re-organizar o corpo, não mais aquele, mas outros que se forma no processo do “desassustar”. Pensar: como já me desorganizei? Como fiz para me reorganizar? Qual é a minha trajetória e o que já produzi diante de tal e qual situação? Dessa maneira, visamos ocupar e produzir simultaneamente uma genealogia e uma experimentação das formas que compõe um corpo e uma forma de existir diante da crise, diante da desorganização. Produzir com as palavras e gestos presentes um horizonte de possíveis para o agora, a partir da reavaliação das forças que atravessaram e ainda atravessam os corpos. Expandir o tempo do presente e a sensação dos possíveis no agora, para que esse acontecimento possa ser vivido na ordem do presente e da coletividade que o permeia.

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