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  • Foto do escritorYan Menezes Oliveira

O que vem a ser e como se opera uma esquizoanálise?

Por um inconsciente social e que protesta


Este texto intente ser uma breve introdução ao pensamento da esquizoanálise, bem como uma apresentação a uma possível conexão entre esse pensamento à prática clínica. A esquizoanálise emerge no contexto da França durante e após os acontecimentos de Maio de 68, importante movimento de contestação cultural que mobilizou estudantes, trabalhadores, imigrantes e pensadoras/es em torno das questões das condições de trabalho, uso da cidade e dos limites e costumes da vida normativa regida pela moral burguesa da época. Apesar de Paris ser lembrada como o epicentro deste movimento cultural, ao longo dos anos anteriores e posteriores, em diversas cidades e países (tais como Brasil, México, República Tcheca, etc.) eclodiam intensas manifestações e conflitos em relação aos modos de vida e aos sistemas de governo repressivos espalhados pelo globo. É neste cenário de contestação com relação aos modos de vida; às instituições como a família, a escola, a fábrica que produziam corpos dóceis e disciplinados para obedecer, trabalhar e consumir; às diversas formas de opressão às minorias segregadas por gênero, raça, etnia, etc, que o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari vêm a compor a obra que daria início ao pensamento da esquizoanálise, a saber, O Anti-Édipo.


O Anti-Édipo é publicado em 1972 e se propõe a apresentação do que seria o pensamento da esquizoanálise, uma intensa crítica à cultura ocidental e seu modo de pensar e produzir e, ao mesmo tempo, uma proposta de psiquiatria materialista. Sendo um livro que dialoga, desde o título em referência à relação do complexo de édipo com nossa cultura, intensa e diretamente com a obra de Sigmund Freud, pai da psicanálise, e com a obra de Karl Marx, filósofo-economista que pensa a forma e o impacto da produção material capitalista na vida e nos modos de vida das pessoas, a psiquiatria materialista como proposta por Deleuze e Guattari vai, ao mesmo tempo, partir desses pensamento e criticá-los na constituição de um entendimento da subjetividade, do desejo, dos modos de vida, do aparelho inconsciente como elementos estritamente ligado ao modo de produção econômica, mas de maneira que um produziria o outro em pressuposição recíproca. O nome esquizoanálise pode ser atribuído ao reconhecimento do pensamento desta psiquiatria materialista proposta como uma analítica do inconsciente, mas não mais um inconsciente intimista e neurótico que sofreria de tédio e de família, mas um inconsciente esquizo, (da nomenclatura psiquiatra esquizofrenia) cujos fluxos e movimentos se conectariam e produziriam arranjos com todas as máquinas e engrenagens sociais.


Em sua densa complexidade, o primeiro tomo de Capitalismo e esquizofrenia: O Anti-Édipo pensará um aparelho inconsciente que, não mais enclausurado no indivíduo, a cada um de nós, não mais representativo do mesmo teatro de édipo, de ressentimento e de sofrimento a partir da estrutura familiar disfuncional, se espalhará por todo o socius e que também o produzirá. Se Freud descreve um inconsciente de representação, como um teatro, onde cada um encenaria, sonharia, deliraria os mesmos conflitos com papai e mamãe, para a esquizoanálise, todos as questões do inconsciente, seus sonhos, delírios, problemas, teriam a ver com o tecido social em sua complexidade, em seus modos de produzir valores normativos como os gêneros, as raças, as individualidades, a educação, o trabalho, a própria família, etc. Através da mistura dos estudos de psicanálise, psiquiatria, literatura, arte, antropologia, política, filosofia, biologia, Deleuze e Guattari dão início em O Anti-Édipo ao pensamento da esquizoanálise onde o inconsciente é produtor e social, sendo este orientado por um desejo movente que a todo tempo problematiza aquilo que está estabelecido e naturalizado nos modos de vida, que contesta o atual e que se vê adoecido justamente de representação, de picuinhas de ego e da intimidade, da produção de repetição em si, de enclausuramento que impede a expressão de sua exuberância e seus excessos.


Quais as suas máquinas e como eles se arranjam? Como funcionam?


Sendo Gilles Deleuze um professor de filosofia interessado nos problemas das maneiras de se pensar e na sua relação com a representação e a servidão do próprio ser humano e, Félix Guattari um psicanalista militante que participava ativamente de coletivos que questionavam a ordem institucionalizada da psiquiatria, da psicanálise, dos movimentos sociais, das pesquisas em ciências humanas e dos meios de comunicação, a esquizoanálise parte de um diverso arcabouço teórico e prático para produzir um pensamento acerca da diferença e das práticas de liberdade possíveis. No segundo tomo de Capitalismo e esquizofrenia, Mil platôs, publicado em 1980, veremos se expandir ainda mais o pensamento da diferença e da multiplicidade no que tange o problema de porquê e como cabe ao ser humano escolher a sua própria servidão, a obediência e a servidão. Em seu passeio esquizo pelo exercício de pensar o próprio pensamento, a obra da esquizoanálise não se define em sistema algum, tendo em vista, justamente, a produção de um pensamento que permanece em movimento e que se conecta com problemas e questões da política do agora.


Ao mesmo tempo, tal pensamento emerge e se produz em conexão com a prática clínica, tanto individual quanto de grupos. O problema do grupo, da coletividade e do socius são fundamentais para os autores, inclusive para conseguirem enxergar esse corpo e esse inconsciente em cada um de nós como algo em produção e aberto para as multiplicidades do fora, da exterioridade, um corpo que se constitui continuamente à medida que afeta e é afetado por outros corpos. A própria noção de individualidade, a noção de eu, é não apenas colocada em cheque, como apontada como aquilo que enclausura a produção inconsciente no problema da família, da escola, do trabalho, do gênero, da raça, tudo aquilo que permeia e produz a nós. Assim, temos pistas para pensar numa clínica orientada pelo pensamento da esquizoanálise como uma clínica onde o sujeito se abre para o fora, onde a experimentação que a clínica se propõe é precisamente a desta abertura para com um fora.

Pode-se pensar que a escuta e experimentação deste inconsciente como apontado pela esquizoanálise se dá pela produção dessas conexões dos corpos com outras máquinas, sempre sociais e coletivas. A partir destas conexões, pensar: quais são minhas máquinas? Como as conecto com outras máquinas? De que maneira permaneço nos mesmos curtos-circuitos? Como sair dessa, dar um rolê, evadir? O quê e como essas máquinas produzem no tecido social e eu sou produzido por elas? Desta maneira, gostaríamos de apontar duas apostas deste trabalho clínico orientado pelo pensamento da esquizoanálíse. Em primeiro lugar, seu caráter político e, em seguida seu caráter de experimentação.


Clínica, política e experimentação


Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari, em um comentário que parafraseia uma célebre frase de Jean Paul Sartre, chegam a afirmar que a política precede a existência. Podemos entender esse enunciado a partir da compreensão de que o que é político é aquilo que se passa entre o coletivo, o que se passa no espaço de decisão e de implicação, de avaliação e de interpretação comum. Assim, o caráter político intrínseco à existência de cada um de nós, diz respeito a toda história dos valores e sentidos que nossa sociedade atribui aos corpos, às famílias, às crianças, às mulheres, à vida, à educação, ao trabalho, etc. Ou seja, nossos corpos são políticos por excelência. Pensar uma clínica atravessada pela política, é pensar uma prática de escuta e experimentação onde a perspectiva de tal exercício não se limite ao indivíduo fechado, sua família e seu arredor próximo.


Somos compostos pelos valores trazidos pelas relações de gênero, de raça, relações de poder entre as diferentes idades, as tecnologias que produzimos e interagimos, as forças disciplinares das instituições de educação, saúde e segurança. Somos atravessados por e produtores de conteúdos midiáticos digitais, consumidores de propagadas e valores simbólicos e monetários. Existimos em um modelo de produção econômico e subjetivo que encerra cada vez nossas possibilidades de relacionamento uns com os outros e com o mundo em torno da competição, da individualidade, do medo. Muito mais do que elementos de composição, essas forças acima mencionadas são como linhas de exterioridade que nos atravessam e produzem nossa subjetividade, que, apesar da aparência politicamente intencionada, nunca se fecha em uma individualidade, em um eu. Assim, mapear nosso corpo político, analisar as linhas e as camadas de linhas sempre sociais e políticas que nos compõem, em especial as camadas que nos fazem produzirmo-nos como indivíduos separados do restante e do fora, parece um exercício pertinente a uma prática clínica política.


Em seguida, parece-nos importante pensar que tipo de trabalho analítico, que tipo de escuta, cuidado e experimentação dos corpos seria possível dentro de uma clínica voltada à abertura da produção dos inconscientes políticos em direção ao fora, em direção às conexões com a exterioridade. Em sua proposta de abertura do desejo ao campo social, bem como em sua consequente crítica ao enclausuramento do desejo no eu e no indivíduo, cai por terra a ideia de uma sujeito fechado a ser descoberto em seus segredos íntimos e profundos, desconhecidos até para ele mesmo, e que os adoece. O sofrimento também é político, sofre-se de comum, sofre-se da abertura que se tem, ou não, ao fora. Sofre-se por repetir-se e não encontrar saídas, não conseguir produzir conexões com outros circuitos. Desconectar e conectar. Desorganizar e organizar novas formas. Assim sendo, torna-se questionável a prática da interpretação, do desvendamento do pequeno segredo íntimo e do trauma pessoal. Escancara-se o caráter político e social do sofrimento e da constituição das subjetividades.


Em lugar da interpretação que busca um do quê sofremos, a esquizoanálise propõe a experimentação, amnésia, o esquecimento de si, no lugar da anamnese, a listagem de todos os sintomas para o médico. Ao invés de descobrir o que estaria oculto no sujeito, criar um espaço de experimentação onde o inconsciente possa se produzir e se conectar com o fora, se experimentar. Nesse processo, as memórias sobre o passado se atualizam como aspectos determinantes, mas não deterministas dos modos de vida, isto é, as memórias são experimentadas e atualizadas como ficções de si, como as histórias de nossos encontros como, até então, fomos capazes de registrar, escrever. Como experimentar novos modos de vida, então? Como produzir outras conexões de corpos, outras formas de expressão e de vida, atualizar os registros de nossas memórias com outros presentes? Seria preciso, sim, experimentar as narrativas e ficções políticas que nos compõe e que, aparentemente, compõem passado, mas que, uma vez ditas ou gesticuladas na clínica, se atualizam no presente e podem se conectar de formas outras. Seria preciso experimentar o passado ao ponto de esquecê-lo como marca determinista.


O processo de raspagem daquilo que somos como seres fechados, da perspectiva de que somos herméticos em nós mesmos, se daria por esse processo de cartografia das vivências e das formas que nos compõe, bem como do mapeamento do que se pode fazer, de que novas conexões e agenciamentos podemos participar. O que pode um corpo? Em que dose este corpo aguenta essa experiência? O que devolve e o que tira a potência de um corpo? São essas as questões que permeiam a experimentação da clínica que, aberta ao político, à exterioridade, não se circula no jogo do equilíbrio, da normalidade, da estabilidade, do enclausuramento de si num gesto de proteção contra ou adaptação ao mundo. Portanto, só nos resta experimentar, produzir processos de experimentação e acompanhar tais processos. O espaço clínico passa a ser um importante espaço onde tudo isso pode ser experimentado, pensado, sentido, uma vez que se trata de um espaço aberto e seguro onde cada qual poderá revisar e escrever as próprias ficções de si.


É certo que, para tanto, para uma clínica que não se volte para a interpretação, mas sim para a experimentação dos corpos, faz-se necessário a produção de cuidado e de prudência para tais processos. Um processo de esquizoanálise passa por espaços de desterritorialização, reterritorialização e territorialização das formas de existência, dos modos de vida em nós. Assim, no jogo de desorganizar e organizar as formas que compõem, há sempre o risco de algo se perder, de algo falhar, de pedaços não se juntarem mais da mesma forma. A experimentação clínica, nisso que envolve de criação do novo, deve ser sempre acompanhada pela criação de uma ética, de um cuidado com as doses das intensidades que atravessam um corpo e das formas que são criadas à medida que se experimenta e que observa tal processo. Desta maneira, a experimentação clínica embasada no pensamento da esquizoanálise trata-se de um processo ético, pois trabalha a produção do cuidado dos encontros, tidos como sempre inéditos, um processo estético, pois lida com a criação e invenção de formas de existências, um inventar a vida como uma obra de arte, e, por fim, de um processo político, pois é um processo sempre feito no e com o tecido social, num plano imanente e comum. Um paradigma ético-estético-político orienta o processo de uma experimentação esquizoanalítica.

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